Não que me tivesse passado despercebida mas ter estes argumentos à mão, compilados e esmiuçados pela verve de quem lida com as dimensões desta crise diariamente é de ler.
(Transcrição tornada possível com o alto patrocínio da douta paciência paternal auxiliada pela tecnologia emailica)
A Crise das Humanidades
Os números estão aí e não deixam margem para dúvidas: as Humanidades estão em crise. Quem olha para os resultados da 1.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior percebe duas coisas: a tradição já não é o que era e sobram agora vagas onde antes abundavam candidatos.
Há explicações simples para esta situação, nalguns casos incidindo directamente sobre a tal crise das Humanidades. A saber: a descida demográfica a que se tem assistido em Portugal nas últimas décadas; a proliferação de universidades públicas e privadas, mais os politécnicos aspirantes a universidades; o bloqueamento de carreiras profissionais ligadas ao ensino, carreiras em princípio bem providas para os próximos tempos.
Um tal cenário só pode espantar quem, há cerca de duas décadas, se recusou a cuidar do futuro. E contudo, a surdez e a cegueira foram mais fortes: abriram-se alegremente universidades e cursos, desabrocharam instalações, professores foram contratados em quantidades generosas, promoveram-se doutoramentos "prontos a vestir", em universidades (muitas vezes estrangeiras) bem calhadas, acenou-se aos estudantes com processos de profissionalização velozes, não raro à custa de assimetrias algumas vezes denunciadas, mas nunca atendidas. Os resultados estão à vista, podendo mesmo perguntar-se neste momento para que servem alguns departamentos e escolas que só à custa de muita maquilhagem de horários e de engenhosas distribuições de serviço disfarçam níveis de ocupação docente baixíssimos.
Governo atrás de governo, ministério atrás de ministério, reitor atrás de reitor, foi-se assistindo a isto sem outra reacção que não fosse fugir para a frente ou então confiar nas virtudes de uma autonomia universitária que com frequência tem servido para camuflar problemas, para proteger interesses corporativos e para eleger reitores macios, mais do que para construir a universidade de excelência de que muito se fala. Poderia pensar-se que a avaliação das universidades públicas controlaria os óbvios deslizamentos que este plano inclinado provoca. E contudo, depois de dezenas de comissões, de milhares de horas consumidas e de toneladas de papel gastas, ainda não vi qualquer resultado prático de uma avaliação que se me afigura falhada. Basta perguntar onde estão medidas que tenham a coragem de ir além de inócuas recomendações, como o encerramento de cursos ou departamentos ou a rescisão de contratos de professores relapsos. Não é estranho que assim seja: conheço casos de avaliações em que o avaliador possuía currículo muito inferior ao avaliado...
No meio de tudo isto, está a crise das Humanidades, que tem também outras causas. Não tratarei de aprofundar explicações que, evidentemente, transcendem o doméstico universo português. Por exemplo: a deslegitimação progressiva da palavra escrita (e lida), em benefício de discursos dominados pela imagem, a gradual perda de poder simbólico de saberes com tradição na cultura ocidental (a Filosofia, a Literatura, a História), a hegemonização televisiva e a brutal tabloidização de uma vida pública reduzida à indigência, a afirmação de ciências sociais que às vezes correm à margem daqueles saberes, a integração académica de formações antes entendidas como profissões com auto-aprendizagens "práticas" (o jornalismo, por exemplo), o crescente prestígio de áreas e de carreiras que correspondem a solicitações novas e socialmente prementes (a psicologia, a informática, a publicidade, o marketing, a gestão), a confiança acrítica no carácter "redentor" de certas ciências (como as ciências da educação), tudo por junto levou a uma redistribuição de poderes e de espaços de actuação, obrigando a repensar o lugar, a função e os modelos de formação por que se regem as Humanidades. Exactamente: essas que se cultivavam e cultivam ainda nas chamadas Faculdades de Letras.
As Faculdades de Letras carecem, decerto, de uma reforma profundíssima, atingindo patamares de intervenção bem mais profundos do que o verniz das redistribuições curriculares e a invenção de novas licenciaturas, porventura apelativas num primeiro momento, mas incapazes de resolver a crise. Neste aspecto, é preciso dizer, com desassombro, que chega a ser deprimente a aflição com que se corre atrás de modismos que tentam disfarçar o indisfarçável. Algumas universidades novas, outras nem tanto e ainda certos politécnicos (desviados da sua matriz genética e, em parte por isso, pagando já o preço da desertificação) são exímios em mascarar com nomes apelativos aquilo que não é senão mais do mesmo. As velhas designações já não "vendem"? Então sirvam-se licenciaturas anunciadas com vocábulos como "comunicação" (este parece ser mágico), "cultura", "animação", "artes", "multimédia" e outros que tais, até se chegar a combinações tão bizarras como línguas e relações empresariais ou línguas e administração editorial. Esta esfalfada ânsia de "inovação" seria cómica se não fosse cruel para os jovens estudantes que embarcam em aventuras de duvidoso desenlace académico e profissional.
Não ponho em causa a legitimidade de formações académicas de nível superior, visando aqueles e outros domínios. Quem o deduzir do que fica escrito pode parar por aqui porque não está a entender nada do que neste texto se diz. (Ainda assim, duvido que seja necessário chegar ao nível da licenciatura para formar alguém em língua gestual portuguesa ou, mais pomposamente, em tradução e interpretação de língua gestual portuguesa). As minhas mais sérias interrogações são de outra ordem. E pergunto: quando, em universidades ainda muito jovens (o que, sob vários pontos de vista, pode ser uma vantagem) ou em politécnicos desviados da sua vocação fundacional, se lançam licenciaturas como aquelas a que aludi, quem faz, com exigência e com independência, o escrutínio do pessoal docente e da sua preparação, das bibliotecas e dos seus fundos, da investigação havida ou em projecto, das instalações e dos equipamentos? Como se "reconvertem" os professores que deixam de ensinar literatura, história ou linguística, para passarem a ensinar "comunicação multimédia" ou "ciências da cultura"? E os processos de avaliação visam realmente a prática pedagógica e o enquadramento científico daquelas aventuras académicas? Não estaremos a confiar demasiado no voluntarismo de quem lança tais cursos ou (pior ainda) nas míopes motivações dos poderes locais, desses que têm o rosto de autarcas a quem se não compra um carro em segunda mão?
Todas aquelas perguntas podem ser singelamente completadas por esta: onde pára o poder político? Tenho notícia de que aquele que agora nos governa se prepara para reduzir drasticamente as designações de centenas de cursos (não exagero) que, com sensatez, não deveriam passar da casa das dezenas. Se neste domínio se trabalhar bem, talvez seja possível atalhar algum do mal já feito, com a certeza de que será necessário bulir com interesse criados e com os famosos "direitos adquiridos".
Passa por aqui a crise das Humanidades. Em boa parte ela provém de uma deriva social e cultural terceiro-mundista, que é matriz de muito do que fica dito, deriva que tem sido possível também pela forma como, por inépcia ou preguiça, com ela têm pactuado os poderes constituídos e os seus "sindicatos de influência". Não é civilizado nem culto um país (e um povo) que não estuda nem investiga o grego e a filosofia antiga, a poesia renascentista e a arte maneirista, os poetas oitocentistas e a literatura latina, os livros de viagens e a história da língua, a literatura comparada e a crítica textual, as epopeias e os textos historiográficos. E não é responsável nem adulto um poder político que, tolhido pela gestão do défice e dos fundos comunitários, ignora o que de mais denso e estruturante existe na nossa memória colectiva, objecto de atenção de muitas daquelas disciplinas.
Deliberadamente enunciei, quase ao correr da escrita, matérias que são, evidentemente, das que maçam os preguiçosos. Não admira que assim seja. Pois não é verdade que o nosso (e talvez não só o nosso) sistema de ensino tem estimulado o exercício lúdico em vez do esforço, a seriação por baixo em detrimento da selecção dos melhores? Pensando bem, é nos níveis elementares do ensino que tudo começa - incluindo a crise das Humanidades. Estou tão certo disso como certo estou de que muitos dos que lerem este texto hão-de descobrir nele, com orgulhosa argúcia, puras motivações corporativas e disfarçados ataques pessoais. É um hábito português já bem conhecido, mas que não deve condicionar o pensamento franco e livre.
Carlos Reis - Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra